GamerGate e a guerra contra mulheres nos videogames

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“Espero que você aproveite bem seus últimos momentos de vida.” A desenvolvedora de videogames Brianna Wu estava em casa, trabalhando, quando a mensagem surgiu na tela do celular. Passava das oito da noite do dia 10 de outubro. O tuíte, publicado por uma conta chamada Death to Brianna (morte a Brianna), perturbava. Mas era muito semelhante a ameaças que ela recebera no passado. Em 2010, ela e a amiga Amanda Warner fundaram a Giant Spacekat, uma empresa de jogos cujo objetivo, de saída, era criar games em cujas histórias as mulheres ocupassem lugar central. Em julho deste ano, as duas lançaram Revolution 60, uma aventura espacial na qual todas as personagens são mulheres. A crítica especializada gostou. Alguns jogadores ficaram irritados: “Revolution 60 não possui uma mensagem feminista declarada, mas essa mensagem fica implícita. Mostramos mulheres sendo incríveis. E isso chateou muita gente”, disse Brianna a ÉPOCA. Por isso, ela estava acostumada a ameaças. As mensagens daquela noite eram diferentes. “Eu vou te estuprar até que você sangre”, continuava o texto. “E sabe de uma coisa? Eu sei onde você mora. Você e Frank moram na rua ...” O endereço estava correto. Brianna ficou aterrorizada. Deixou o celular cair e desabou em choro. Naquela noite, Brianna virara o mais novo alvo do GamerGate.

Desde agosto, atrizes, jornalistas e desenvolvedoras recebem, através das redes sociais, ameaças de morte ou estupro. São insultadas online e veem informações pessoais, como endereços de e-mail e residência, publicados na internet . As mensagens vêm acompanhadas pela hashtag #GamerGate – o nome de um movimento que, segundo seus apoiadores, pretende lutar pela integridade do jornalismo especializado em videogames.

Além de Brianna, já foram alvo do GamerGate a jornalista Leigh Alexander, a atriz Felicia Day (do seriado Supernatural) e a crítica de mídia Anita Sarkeesian. Sarkeesian ficou famosa online ao apresentar uma série de vídeos em que discute a hipersexualização e a falta de protagonismo das mulheres em jogos populares, como Call of Duty. Em outubro, precisou cancelar uma palestra que daria na Universidade Estadual de Utah: pelo Twitter, um internauta ameaçou tornar o auditório palco de um massacre, caso a palestra acontecesse.


Em comum, todas essas mulheres têm o fato de ser figuras públicas, de destaque no mundo dos games. Criam seus próprios jogos, escrevem sobre o tema e vivem imersas nesse universo desde a infância. Segundo os gamergaters, como seus agressores ficaram conhecidos, elas ameaçam a qualidade dos jogos produzidos e o próprio significado do termo “gamer” ao insistir em um ponto – a maneira como as mulheres são retratadas nos games precisa mudar.
Como diversas histórias de violência contra a mulher, o Gamergate começa com as ações de um homem. O cientista da computação Eron Gjoni, de 24 anos, namorava a desenvolvedora americana Zoe Quinn. O relacionamento terminou. Gjoni não aceitou bem a nova situação. Em um longo texto intitulado The Zoe Post, Gjoni conta como, durante o namoro, Zoe o manipulou, afastou de amigos e o traiu repetidas vezes. Segundo ele, Zoe teria dormido com o jornalista Nathan Grayson, do popular site de videogames Kotaku. Seu objetivo com isso seria obter reportagens positivas a respeito do jogo que criara, Depression Quest.
Lançado no final de 2013, Depression Quest lembra pouco um jogo convencional. Não tem a pancadaria de GTA, ou narrativa mística de Zelda. Baseado nas experiências pessoais de Zoe, fala sobre depressão. Zoe enfrenta o problema desde o começo da adolescência. Segundo um artigo da revista The New Yorker, sem dinheiro para pagar por terapia, a garota preferiu se refugiar nos jogos de computador. Entendeu que essa era a linguagem mais adequada para falar sobre o que passou.
Em Depression Quest, o jogador acompanha um personagem doente durante suas tarefas diárias. Nesse meio tempo, precisa fazer escolhas – ir a uma festa com os amigos ou passar a noite sozinho em casa? Nem sempre consegue escolher entre uma opção e outra: tal qual uma pessoa com depressão, o personagem fica paralisado. A festa com os amigos não está ao seu alcance.
O jogo foi elogiado pelos jornalistas. Despertou críticas entre os gamers: “Não dá pra chamar isso de jogo, já que o objetivo não é entreter”, disse um internauta na lista de comentários de um site de jogos. Para esses usuários, estava claro que a imprensa mentia quando fazia elogios a Zoe. E que as alegações de Eron Gjoni, de que ela o traíra em troca de uma resenha positiva, eram verdadeiras.
Em um texto publicado no dia 20 de agosto, o editor do site Kotaku, e chefe de Nathan Grayson – o jornalista com quem Zoe tinha dormido – teve de explicar que não tinha motivos para descrer da ética de seu repórter. Grayson jamais escrevera uma resenha sobre Depression Quest
As justificativas não bastaram para evitar que Zoe virasse um alvo. Apesar de se dizer revoltados com o desrespeito aos princípios jornalísticos, alguns gamers começaram a agredir Zoe, em lugar de cobrar explicações dos repórteres com os quais eles afirmavam que ela dormiu. As agressões eram planejadas em fóruns anônimos da internet: no 4chan e o 8chan. Lá, desde o lançamento do jogo, usuários não identificados discutiam as melhores maneiras de machucá-la: “Da próxima vez em que ela aparecer em uma conferência, vamos machucá-la de um jeito que nunca vai curar completamente. Um bom ataque nos joelhos.”
No dia 27 de agosto, o ator e ativista de direita Adam Baldwin publicou, no Twitter, dois vídeos difamando Zoe. Uniu a eles a hashtag #GamerGate. O Gate do nome remete ao escândalo do caso Watergate: no início dos anos 1970, veio a público que o partido republicano tentara grampear o escritório do partido Democrata, no Complexo de Watergate. O caso levou à renúncia do então presidente Richard Nixon. Ao criar a hashtag, Baldwin afirmava que também o mundo dos games estava diante de um escândalo de corrupção que precisava ser investigado. Em uma semana, a hashtag foi reproduzida mais de 240 mil vezes, segundo o site de análises de Twitter Topsy. Frequentemente, a menção incluía também ataques a uma desenvolvedora.
Anita virou alvo, pela primeira vez, no dia 27 de agosto, pouco depois de publicar um vídeo em que  analisava a imagem da mulher usada como objeto de decoração nos jogos. As ameaças a Brianna vieram em seguida quando, pelo Twitter, ela decidiu se posicionar contra o GamerGate.
Casos de assédio e ameaça a mulheres na indústria da tecnologia são comuns: “Toda mulher que conheço nessa indústria, que se torna conhecida em sua carreira, recebe ameaças”, diz Brianna. “Acaba se tornando parte do nosso trabalho”. O GamerGate se distingue dos incidentes anteriores pela violência e pela proporção que tomou. A polícia americana conduz investigações para determinar a identidade dos agressores e, nos EUA, o assunto virou tema do noticiário nacional. Chamou atenção para uma indústria de jogos que se expande, mas resiste em mudar. E que vê com maus olhos a presença feminina.
Mulheres na indústria da tecnologia também não são novidade. Elas começaram a trabalhar no ramo em meados dos anos 70 e, mesmo após tanto tempo, continuam em minoria – principalmente na área de desenvolvimento de jogos. Segundo uma pesquisa realizada pela International Game Developers Association, 22% dos funcionários das empresas de games em todo o mundo são do sexo feminino. Em 2001, o número era menor: 7,1% dos funcionários eram mulheres.
Uma questão que preocupa os especialistas é a dificuldade de corporações de tecnologia em reter talentos – mesmo as desenvolvedoras que entram no mercado, acabam saindo depois de pouco tempo. Em 2006, um estudo desenvolvido pela economista Sylvia Ann Hewlett, da Universidade Harvard, tentou entender as razões de tamanha evasão. Patrocinada por empresas como Microsoft, Sylvia investigou a presença feminina nesse tipo de organização. Concluiu que o principal motivo pelo qual 52% das profissionais contratadas por companhias tecnológicas nos Estados Unidos pediam demissão era a rejeição por parte dos seus colegas do sexo oposto. De acordo com Hewlett, vigora nessas empresas uma “cultura de trabalho geek predatória e excludente” que resultou, em 63% dos casos relatados, em assédio sexual. Aquelas que não foram assediadas reclamaram de não ser convidadas para confraternizações depois do expediente – durante as quais assuntos de trabalho eram discutidos com frequência.



Diversas barreiras impediam que as mulheres se enturmassem profissional e pessoalmente com a equipe. Nos EUA, algumas empresas tentaram resolver esse problema criando programas corporativos com o objetivo de demonstrar receptividade às cientistas e equilibrar a proporção de gêneros entre os empregados.
Mesmo assim, casos de sexismo são comuns. Naomi Clark, game designer há mais de 20 anos e professora da New York University e da New York Film Academy, relata que, desde que entrou no ramo, já testemunhou diversos casos de preconceito: eles variam de piadinhas sobre o corpo de colegas até a realização de reuniões executivas que acabam se revelando uma espécie de encontro romântico. Presenciou também casos de chefes que se esqueciam, deliberadamente, de convidar suas funcionárias para certos eventos corporativos: segundo eles, eram ambientes masculinos. “Felizmente, esses incidentes acontecem bem menos hoje. Quando entrei na indústria, ia em conferências e o banheiro feminino estava sempre deserto – de alguns anos para cá, as filas começaram a crescer. Isso mostra que o número de mulheres jovens no mercado está aumentando”, afirma.
As ameaças de morte assustaram a desenvolvedora Brianna Wu. Mas sexismo é algo a que ela já se acostumara. Brianna trabalhou na indústria de tecnologia por toda a sua vida adulta. Tornou-se uma figura importante no meio, dona de sua própria empresa. Mesmo assim, sente-se frustrada: “Não é que as pessoas digam, todo o tempo: ‘Nós não queremos mulheres por perto’. Mas é um ambiente muito masculino e que, sem que as pessoas sequer pensem a respeito, se torna hostil à presença feminina”. Uma situação que a marcou foi conversar sozinha com representantes de uma das três grandes produtoras atuais de consoles de videogame –Nintendo, Sony e Microsoft. “Estava em reunião para falar sobre a possibilidade de levar meu jogo para uma dessas plataformas. No meio da minha apresentação, em que eu comentava sobre a presença feminina nos jogos, um dos homens à mesa começou a rir. Ele estava rindo do meu trabalho. Foi o primeiro momento nessa indústria em que eu me dei conta de que eu não era bem-vinda. Eu concluí a reunião da melhor maneira que pude e, no fim, tentei abordar a pessoa para dizer que havia achado aquela atitude nada profissional. Ele me ignorou.”
De certa forma, Brianna teve sorte em só enfrentar sua primeira discriminação relacionada a videogames quando mais velha. A maioria das aficionadas lembram de ser julgadas por gostar de um hobby “de moleque” já na infância ou adolescência, por amigos e até familiares. Nina Freeman, estudante da graduação de Mídia Digital Integrada na New York University, é uma delas. Ela sempre ouviu que computador era algo nerd demais para as meninas e, durante os quatro anos em que jogou Final Fantasy online, se sentia incomodada com jogadores que pediam que enviasse fotos suas ou que a acusavam de receber privilégios durante a partida por ser uma garota bonita. Elyse Lemoine, uma colega de Nina na faculdade, se questionava quando pequena por que a princesa não podia se salvar sozinha nos jogos e, assim como Nina, foi assediada e ameaçada em jogos virtuais como World of Warcraft e League of Legends quando descobriam que era mulher. “Entrar em lojas de jogos como Gamestop [famosa nos Estados Unidos] pode ser desgastante, especialmente quando vendedores perguntam se estou procurando algo para meu namorado ou tentam empurrar para mim ‘games femininos’, como a versão de moda do The Sims. Minha ‘credibilidade nerd’ também foi desafiada por homens que acham que conhecem mais sobre uma franquia do que eu. É degradante desconfiarem do que faço ou gosto por causa do meu gênero”, afirma.
As hostilidades não impediram que, lentamente, o número de desenvolveras e jogadoras crescesse. Nos Estados Unidos, hoje, as mulheres adultas jogam mais que os adolescentes: de acordo com uma pesquisa realizada pela Entertainment Software Association (ESA), entre os jogadores, o número de mulheres com mais de 18 anos ultrapassa a quantidade de homens com menos de 18.
Alguns fatores ajudam a explicar essa mudança de público. De um lado, gamers e desenvolvedoras brigam para ganhar terreno. Hoje, algumas mulheres oferecem workshops de programação para amigas e conhecidas. É o caso dos projetos The Yellow Thread SocietyThe Different Games Conference e Code Liberation. “Mulheres querem poder trabalhar na indústria sem temer por suas vidas e carreiras. Não acho que a indústria em geral tem feito muito para mudar isso. Entretanto, as próprias mulheres estão reivindicando seus direitos”, diz Nina Freeman, co-fundadora da Code Liberation.
Alguns  lançamentos e mudanças tecnológicas também contribuíram para esse resultado. Nos últimos anos, a indústria desviou a mira de seu público tradicional, em busca de audiência mais ampla: “A campanha de marketing do Nintendo Wii foi muito bem-sucedida, ao trazer o console para dentro de casa, de um jeito que não víamos desde os anos 1980”, diz Jennifer Jenson, professora da Universidade de York, no Canadá. Desde o início dos anos 1990, ela pesquisa a presença feminina nessas produções. “O Wii foi feito para ser jogado em família”. Há também mais gente jogando pelo celular: segundo a mesma pesquisa da ESA, 44% dos jogadores americanos consomem games para dispositivos móveis.
Ainda assim, a indústria continua a planejar seus grandes lançamentos tendo em mente um tipo muito específico de consumidor: o adolescente branco heterossexual. Esse é o perfil do gamer clássico, surgido em meados dos anos 1980. “Na época, a indústria não pensava nas mulheres como público. Ainda que nós estivéssemos jogando”, diz Jennifer. Para os gamers clássicos é que foram feitos os jogos que Anita Sarkeesian critica. E para muitos deles, jogos como os criados por Brianna Wu ou Zoe Quinn não são interessantes. “E agora esses homens se sentem ameaçados pela presença feminina na indústria”, diz Jennifer.
Com mais gente jogando, o significado do termo “gamer” também deveria mudar, para abarcar essa nova legião de jogadores, mais diversa. Os gamergaters não gostaram da idea“Games não são para todo mundo”, escreveu o jornalista pró-gamergate Allun Bokhari. “Jogos consomem muito tempo e exigem considerável dedicação”. Segundo Bokhari, a intenção do movimento #GamerGate não é afugentar mulheres. Os GamerGaters querem salvar os games para os gamers de verdade.
Os GamerGaters se acostumaram a seus jogos repletos de pancadaria e mulheres seminuas. Sua reação violenta decorre do temor de que, com mais gente jogando e produzindo, esses games desapareçam. E que, com eles, desapareça também a identidade “gamer” de que eles se orgulham – a do rapaz aficionado, que passa horas diante da tela, investe tempo e dinheiro no hobby. “O que as pessoas debatem agora é o quão inclusiva é essa identidade ‘gamer’”, diz Adrienne Shaw, professora de mídias e tecnologias na Universidade Temple e autora do livro Jogando no limite: Sexualidade e Gênero nas margens da cultura gamer. “O problema é que, com toda a polêmica relacionando jogos e violência, essa comunidade de gamers ainda reage mal a qualquer tipo de crítica”.

Os videogames hoje produzidos falham por nem sempre pensar em seus novos jogadores: “Há poucos jogos cujos protagonistas são mulheres, ou que tenham temática LGBT, ou que incluam pessoas de diferentes etnias, etc…”, diz Shaw. Isso preocupa porque eles, como outras formas de mídia, influenciam a maneira como as pessoas se relacionam na realidade: “Quando alguns grupos jamais são representados, ou são representados de maneira equivocada, torna-se difícil se adequar ao mundo”, diz Shaw. “É difícil se adequar quando você nunca se encaixa nas normas que, segundo os demais, definem pessoas ‘como você’”. Apesar do machismo ainda latente, Elyse Leimone diz notar um processo vagoroso e gradual de mudança na indústria. “Vejo mais games com a opção de jogar personagens de diferentes gêneros e customizar sua aparência. Vejo mais protagonistas femininas que arrasam tanto quanto os homens. Mesmo assim, algumas delas ainda são sexualizadas, com peitos grandes, cinturas estreitas e vestimentas provocantes”.
A introdução de narrativas novas – com personagens femininas críveis que vistam um pouco mais de roupa, por exemplo – ajudaria a cultura gamer a se tornar mais flexível. “Quando se tem personagens feministas realistas, as mulheres conseguem se relacionar mais facilmente com a história", diz Naomi, da New York University. "É uma experiência tão agradável ver alguém como você na tela de um jogo”.

Referências:

Texto da Revista Época:
http://epoca.globo.com/vida/noticia/2014/11/bgamergateb-e-guerra-contra-mulheres-nos-videogames.html


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